O que será ser velho?
Há uma altura em que uma coisa justa e boa - como a socrassanta tentativa de se salvar uma vida, por exemplo - se converte de repente em teimosia cruel. A omnipotência da ciência raramente respeita o ser humano que se oculta na "patologia" da velhice.
Falei da ciência, mas deveria ter falado de toda a sociedade "civilizada". Vivendo aqui, vivendo neste mundo cada vez mais frenético e afastado das raízes da verdade, tem-se muitas vezes a impressão de que a velhive já não existe. Não existe nos jornais e nem nas revistas de capas lustrosas, não existe na publicidade ( os velhos consomem poucos produtos e, em muitos casos, dada a exiguidade das reformas, não consomem mesmo nada), não existe no imaginário daqueles que são jovens.
Ninguém pergunta: como é que serei, quando for velho? Como viverei? Como serei aceite pelas pessoas que estão à minha volta?
Ninguém se pergunta: serei amado, respeitado, ou serei posto de lado como um trapo velho? Como algo que já não serve para nada e, como inútil que é, deita-se fora? Vive-se nesta frenética e cada vez mais longa juventude, uma juventude que é como um elástico, vai-se puxando cada vez mais; e quando o elástico já não pode ser mais esticado, recorre-se a outras técnicas: manda-se cortar, coser, repuxar.
Qual é este medo tremendo da própria aparência? De se reconhecer ao espelho mesmo com as rugas? De deixar-se viver cada idade como se fosse única e tão boa como todas as outras? O medo da morte é terrível e para não o aceitarmos sujeitamo-nos às coisas mais incríveis.
Para se manter a fidelidade ao dever da juventude perpétua, engolem-se mezinhas, aumenta-se a "fitness": as nádegas têm de ser firmes, as faces, também. Enquanto tudo estiver firme, está-se salvo. E eu pergunto, e a verdadeira felicidade onde está?
A velhice está fisiologicamente perto da morte, e é por isso que à sua volta se cavam trincheiras, é por isso que ao depararmos por acaso com um velho, desviamos instintivamente o olhar.
O que sucede aos velhos? Não importa. Como é que vivem? Não importa. Não consomem, não produzem, passam a vida doentes, fisicamente não são sedutores, não se reproduzem, o seu futuro como eleitores é bastante limitado. São um peso, uma chatice, um estorvo social.
Quando penso na nossa sociedade, vem-me por vezes à ideia uma grande barca que anda à deriva. Uma sociedade que rejeita o mistério da morte é uma sociedade perigosamente suspensa no vazio, flutuante. Se a morte não existe, nada existe, não há uma relação de valor entre as coisas, as acções deixam de ter fundamento, deixa de haver memória, deixa de haver passado e presente.
A sociedade que nos é proposta é a que se descreve num único fotograma em que todos sorriem. Sorriem de quê? Sorriem porquê? Ninguém sabe, ninguém diz. Tem de se olhar bem, com atenção, para reparar que não é um sorriso, é um trejeito, o trejeito apavorado de quem está num lugar e não sabe porquê.