sábado, abril 22, 2006

A Duração da Vida em Perspectiva

"A nossa religião não teve fundamento humano mais seguro do que o desprezo pela vida. Não somente o exercício da razão nos convida a isso, pois por que temeríamos perder uma coisa que perdida não pode ser lamentada; e, já que somos ameaçados por tantas formas de morte, não haverá maior mal em temê-las todas do que em suportar uma?Que importa quando ela será, pois que é inevitável? A alguém que dizia a Sócrates: «Os trinta tiranos condenaram-te à morte», respondeu ele: «E a natureza a eles». Que tolice nos atormentarmos sobre o momento da passagem para a isenção de todo o tormento!

Assim como o nosso nascimento nos trouxe o nascimento de todas as coisas, assim a nossa morte trará a morte de todas as coisas. Por isso, chorar porque daqui a cem anos não estaremos a viver é loucura igual a chorar porque há cem anos atrás não vivíamos. A morte é origem de uma outra vida. Assim choramos nós; assim nos custou entrar nesta aqui; assim nos despojamos do nosso antigo véu quando entramos naquela.

Não pode ser penoso algo que o é apenas uma vez. Será certo temer por tão longo tempo uma coisa de tão breve duração? A morte torna iguais o viver por longo tempo e o viver por pouco tempo. Pois o longo e o breve não se aplicam às coisas que não existem mais. Diz Aristóteles que há no rio Hípanis animaizinhos que vivem apenas um dia. O que morre às oito horas da manhã morre na juventude; o que morre às cinco horas da tarde morre na decrepitude. Quem de nós não ri ao ver considerar como ventura ou desventura esse momento de duração? O mais e o menos da duração da nossa vida, se a compararmos com a eternidade ou ainda com a duração das montanhas, dos rios, das estrelas, das árvores e mesmo de alguns animais, não é menos risível."

Michel de Montaigne, em "Ensaios"


Será que esta reflexão de Montaigne não foi uma verdadeira aula de razão e sensibilidade?
Pudéssemos nós ter tamanha clareza no entendimento do mundo e tão despojada noção do sentido da vida, certamente seríamos mais felizes.
No entanto, penso eu, há dois tipos de temor da morte: o do fim em si mesmo (que significa a "não mais existência" neste mundo físico, com seus momentos mais ou menos felizes) e o temor do acto de morrer, com suas promessas de momentos "eternos" de dores incertas e excruciantes.
Quanto ao primeiro, o aprofundamento da compreensão da nossa realidade objectiva e do mundo espiritual (tão questionado) traz consolo e tranquilidade prévia, mas, quanto ao segundo, somente a coragem pessoal, virtude adquirida nas lutas da vida, pode atenuar o sofrimento.
Ou estarei errada? Será isto insanidade ou genialidade?

quarta-feira, abril 19, 2006

O mundo é de quem não sente

"O mundo é de quem não sente. A condição essencial para se ser um homem prático é a ausência de sensibilidade. A qualidade principal na prática da vida é aquela qualidade que conduz à acção, isto é, a vontade. Ora há duas coisas que estorvam a acção - a sensibilidade e o pensamento analítico, que não é, afinal, mais que o pensamento com sensibilidade. Toda a acção é, por sua natureza, a projecção da personalidade sobre o mundo externo, e como o mundo externo é em grande e principal parte composto por entes humanos, segue que essa projecção da personalidade é essencialmente o atravessarmo-nos no caminho alhieo, o estorvar, ferir e esmagar os outros, conforme o nosso modo de agir.

Para agir é, pois, preciso que nos não figuremos com facilidade as personalidades alheias, as suas dores e alegrias. Quem simpatiza pára. O homem de acção considera o mundo externo como composto exclusivamente de matéria inerte - ou inerte em si mesma, como uma pedra sobre que passa ou que afasta do caminho; ou inerte como um ente humano que, porque não lhe pôde resistir, tanto faz que fosse homem como pedra, pois, como à pedra, ou se afastou ou se passou por cima."

Fernando Pessoa, em "O Livro do Desassossego"

quarta-feira, abril 05, 2006

O tempo que nos resta

"De súbito sabemos que é já tarde.
Quando a luz se faz outra, quando os ramos da árvore que somos soltam folhas
e o sangue que tínhamos não arde como ardia, sabemos que viemos e que vamos.
Que não será aqui a nossa festa.

De súbito chegamos a saber que andávamos sozinhos.
De súbito vemos sem sombra alguma que não existe aquilo em que nos apoiávamos.
A solidão deixou de ser um nome apenas.
Tocamo-la, empurra-nos e agride-nos. Dói.
Dói tanto!

E parece-nos que há um mundo inteiro a gritar de dor,
e que à nossa volta quase todos sofrem e são sós.
Temos de ter, necessariamente, uma alma.
Se não, onde se alojaria este frio que não está no corpo?
Rimos e sabemos que não é verdade.
Falamos e sabemos que não somos nós quem fala.
Já não acreditamos naquilo que todos dizem.
Os jornais caem-nos das mãos.
Sabemos que aquilo que todos fazem conduz ao vazio que todos têm.

Poderíamos continuar adormecidos, distraídos, entretidos.
Como os outros.
Mas naquele momento vemos com clareza que tudo terá de ser diferente.
Que teremos de fazer qualquer coisa semelhante a levantarmo-nos de um charco.
Qualquer coisa como empreender uma viagem até ao castelo distante
onde temos uma herança de nobreza a receber.

O tempo que nos resta é de aventura. E temos de andar depressa.
Não sabemos se esse tempo que ainda temos é bastante.

E de súbito descobrimos que temos de escolher aquilo que antes havíamos desprezado.
Há uma imensa fome de verdade a gritar sem ruído,
uma vontade grande de não mais ter medo,
o reconhecimento de que é preciso baixar a fronte e pedir ajuda.
E perguntar o caminho.

Ficamos a saber que pouco se aproveita de tudo o que fizemos,
de tudo o que nos deram, de tudo o que conseguimos.
E há um poema, que devíamos ter dito e não dissemos, a morder a recordação dos nossos gestos.
As mãos, vazias, tristemente caídas ao longo do corpo.
Mãos talvez sujas. Sujas talvez de dores alheias.

E o fundo de nós vomita para diante do nosso olhar aquelas coisas
que fizemos e tínhamos tentado esquecer.
São, algumas delas, figuras monstruosas, muito negras,
que se agitam numa dança animalesca.
Não as queremos, mas estão cá dentro.
São obra nossa.
Detestarmo-nos a nós mesmos é bastante mais fácil do que parece,
mas sabemos que também isso é um ponto da viagem
e que não nos podemos deter aí.

Agora o tempo que nos resta deve ser povoado de espingardas.
Lutar contra nós mesmos era o que devíamos ter aprendido desde o início.
Todo o tempo deve ser agora de coragem. De combate.
Os nossos direitos, o conforto e a segurança? Deixem-nos rir...
Já não caímos nisso! Doravante o tempo é de buscar deveres dos bons.
De complicar a vida.
De dar até que comece a doer-nos.
E, depois, continuar até que doa mais.
Até que doa tudo.

Não queremos perder nem mais uma gota de alegria,
nem mais um fio de sol na alma,
nem mais um instante do tempo que nos resta."


E não será mesmo assim? Mas agora onde nos agarramos para o que nos resta percorrer? Mesmos os mais conscientes e os mais relutantes têm os seus meios mais resistentes.. Quais serão? Onde os encontrar?