quinta-feira, setembro 29, 2005

O que será ser velho?

Há uma altura em que uma coisa justa e boa - como a socrassanta tentativa de se salvar uma vida, por exemplo - se converte de repente em teimosia cruel. A omnipotência da ciência raramente respeita o ser humano que se oculta na "patologia" da velhice.
Falei da ciência, mas deveria ter falado de toda a sociedade "civilizada". Vivendo aqui, vivendo neste mundo cada vez mais frenético e afastado das raízes da verdade, tem-se muitas vezes a impressão de que a velhive já não existe. Não existe nos jornais e nem nas revistas de capas lustrosas, não existe na publicidade ( os velhos consomem poucos produtos e, em muitos casos, dada a exiguidade das reformas, não consomem mesmo nada), não existe no imaginário daqueles que são jovens.

Ninguém pergunta: como é que serei, quando for velho? Como viverei? Como serei aceite pelas pessoas que estão à minha volta?
Ninguém se pergunta: serei amado, respeitado, ou serei posto de lado como um trapo velho? Como algo que já não serve para nada e, como inútil que é, deita-se fora? Vive-se nesta frenética e cada vez mais longa juventude, uma juventude que é como um elástico, vai-se puxando cada vez mais; e quando o elástico já não pode ser mais esticado, recorre-se a outras técnicas: manda-se cortar, coser, repuxar.

Qual é este medo tremendo da própria aparência? De se reconhecer ao espelho mesmo com as rugas? De deixar-se viver cada idade como se fosse única e tão boa como todas as outras? O medo da morte é terrível e para não o aceitarmos sujeitamo-nos às coisas mais incríveis.
Para se manter a fidelidade ao dever da juventude perpétua, engolem-se mezinhas, aumenta-se a "fitness": as nádegas têm de ser firmes, as faces, também. Enquanto tudo estiver firme, está-se salvo. E eu pergunto, e a verdadeira felicidade onde está?

A velhice está fisiologicamente perto da morte, e é por isso que à sua volta se cavam trincheiras, é por isso que ao depararmos por acaso com um velho, desviamos instintivamente o olhar.
O que sucede aos velhos? Não importa. Como é que vivem? Não importa. Não consomem, não produzem, passam a vida doentes, fisicamente não são sedutores, não se reproduzem, o seu futuro como eleitores é bastante limitado. São um peso, uma chatice, um estorvo social.


Quando penso na nossa sociedade, vem-me por vezes à ideia uma grande barca que anda à deriva. Uma sociedade que rejeita o mistério da morte é uma sociedade perigosamente suspensa no vazio, flutuante. Se a morte não existe, nada existe, não há uma relação de valor entre as coisas, as acções deixam de ter fundamento, deixa de haver memória, deixa de haver passado e presente.
A sociedade que nos é proposta é a que se descreve num único fotograma em que todos sorriem. Sorriem de quê? Sorriem porquê? Ninguém sabe, ninguém diz. Tem de se olhar bem, com atenção, para reparar que não é um sorriso, é um trejeito, o trejeito apavorado de quem está num lugar e não sabe porquê.

4 Comments:

Blogger JNM said...

Espectacular este post. Maravilhoso.

A futilidade, o efémero exponenciado á loucura, a fábula, a ilusão da permanência...O nosso mundo está perdido e não é de agora.

fazemos com os velhos o que se fazia aos leprosos.

acho que para sermos governáveis e para sermos servis, temos que ser Sihdarthas, nunca saindo dos palácios, onde não há dôr, nem doença, nem sofriemento nem morte. E assim alheados, como se fosse uma droga, estas coisas longe dos nossos olhos tornam-se suportáveis e depois inexistentes... O que é afinal o "ópio do povo"? a Religião...ou a sociedade a política?

BJO.

9/30/2005 11:26 da tarde  
Blogger Rui said...

parece que o tempo piorou a situaçao...
dantes os velhos eram sabios, na india eram "adorados" pelas suas vivencias e experiencia.
ate os vikings(considerados uns barbaros) antes de cavarem as suas terras cavavam a dos mais velhos ja sem forças para o trabalho...

e a nossa sociedade, e a sobrevivencia do mais forte ou mais esperto!!

"nesta terra nao é perciso ser o melhor, é perciso ser o mais Rato!" palavras de um professor...
xau xau

10/02/2005 12:32 da tarde  
Blogger 100asas said...

Desculpa ahraht mas não concordo contigo.

Não penso que para sermos governáveis tenhamos que nos aprisionar em imaginários palácios em que a realidade se resume ao belo e agradável.

Acho que para vivermos em pleno não devemos, nem podemos, fechar os nossos olhos àquilo que acontece em volta de nós. Porque não é por se fingir que algo não ocorre, que se vai tornar inexistente! A única coisa que se torna inexistente é a nossa responsabilidade perante ela!

Para darmos valor aquilo que temos é necessário receber e absorver o bom e o belo, e entender e a aceitar o mau e o cruel.

Para rejeitar a ilusão da permanência, é necessária a percepção da realidade da dorida insignificância. Os olhos e a alma, não devem nunca ser fechados!

E se os velhos são espelhos de sabedoria e de experiência, não deixam de seres humanos com fraquezas e fracassos. Não devem ser temidos e rejeitados apenas por nos recordarem, que também nós, um dia, assim seremos... E ao fim chegaremos!

10/02/2005 5:46 da tarde  
Blogger Caracolinha said...

Olá minha querida ... sou a Caracolinha ... e que feliz fiquei com a tua visita à casquinha ... realmente foi uma coincidência falarmos sobre o mesmo tema ... um tema que me é particularm,ente querido ... acho que, apesar da antiguidade não ser um posto, o respeito pelo passar do tempo é algo tão básico que nem merecia ser passível de discussão.

Já te tinha visto no blog da Vespinha e já estava para cá aparecer há algum tempo ....

Volta sempre que quiseres à minha casquinha, és muito bem vinda.

Uma beijoca encaracolada ~:o)

10/03/2005 6:02 da tarde  

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