segunda-feira, outubro 31, 2005

As entranhas de uma baleia burocrática


Como poderei eu explicar isto?
Caminhando em direcção às aparentes águas passivas, digamos que fui engolida pela baleia das ideias pré-concebidas. Deixei-me levar por marés de assuntos inacabados, por congestões de mau funcionamento e organização.
Estava perdida como tantos outros pequenos peixes asfixiados com insuportáveis problemas por resolver.

No meio do confuso Oceano Burocrático, eramos balançados como uma bola de ping-pong de um lado para o outro, sem destino próprio. Falta de competência e aptidão era o que marcava fundamentalmente esta complexidade de ondas furtivas de serviços administrativos. Tartarugas preguiçosas, ao qual se intitulavam descaradamente como funcionários activos, deixavam-nos desesperados à espera como tubarões famintos prontos para o primeiro sinal de ataque. Filas e filas de alforrecas venenosas, punham-se a desparatar por qualquer tipo de conversa que dê-se início a uma discussão, para mais tarde virem a descobrir que tinham uma infinitude de tempo para o fazer de uma forma bem mais calma.

Farta deste sistema de departamentos e serviços públicos carregados de mau atendimento e humor, decidi tomar uma atitude drástica.
Apesar daquela ser a realidade de muitos casos de descontraídas baleias gordas e gigantescas que fazem o seu percurso diário extremamente lento, aprendi que esta ilusão era de todo exagerada. Senti que tudo pode ser revolucionável e que com um pouco de luta, motivação e empenho atingimos os nossos fins.
Foi, então, que uma extraordinária ideia me surgiu.
Mergulhando no meio de tantas fezes de carimbos rejeitados, de processos adiados e de outros tantos com falta de documentação, decidi respirar ar puro e vir à superfície.

Para continuar na onda do bom senso e sensatez, aliviei a burocracia e dirigi-me à Loja do Chinês. Fiquei estupefacta, impressionada! Mas que loja! Que eficácia e acessibilidade! Estava, de facto, deslumbrada com a variedade de serviços prestáveis e a facilidade de os adquirir. Tinha de tudo... podiamos ter de tudo...
Através de um meio personalizado, consegui compreender todas as secções e o seu funcionamento. Era prática e fornecia todo o tipo de informações com uma enorme celeridade.
Dando uma volta por todos os corredores e vendo todo os produtos de consumo, encontrei finalmente o que queria, com as devidas indicações, e fiquei bastante satisfeita.
Direccionei-me para esta com uma fúria de prazer.
Peguei-lhe e sentia os meus dedos suarem de alegria e excitação.
Determinada a continuar com esta emoção durante mais uns momentos, sentei-me e pus-me a observar e a apreciar o contentamento na cara dos demais que não levavam mais de, sensivelmente, quinze minutinhos até esboçar um orgulhoso e agradecido sorriso.

Dado o meu dia por terminado, fiz uma vénia a tão explendido espaço e retirei-me em pulgas com o pequeno e quase insignificante objecto, de supostos meses, nas mãos, dizendo para comigo em silêncio uma única palavra: Obrigada!!

segunda-feira, outubro 24, 2005

Mãe

She was quiet and still holding our heart
Like a beautiful sculture made with love and art...
Looking as fragile and gentle as a little bird,
Awakening in us a feeling for which there is no word.
Then, suddently, like a dream turned reality
She starts dancing and flying angelically
As if a little girl as prayed to enchant us all,
And an angel as been born from a beautiful doll.
All the light, eyes and souls are pointing to
Her like a sunflower points the sun
Because she's the light who has been
Leading our hearts since this fantasy began
And no one can judge her how and why
Because she's the one who can fly...

Sara Meireles
(28 de Dezembro de 2003)


Mãe,
Tu que tinhas eloquência e sabedoria na linguagem
Tu que tinhas sempre um sorriso nas horas de desalento
Tu que sabias o que era o respeito e a tolerância
Tu que não julgavas e sabias compreender todos com extrema paciência
Tu que tinhas na tua pessoa toneladas de aceitação, sinceridade e honestidade
Tu que eras feita duma maravilhosa autenticidade carregada de verdade
A tua personalidade, peculiaridade, individualidade...
Faziam-me admirar-te, todos os dias da minha vida, cada vez mais e mais...
Um olhar carinhoso e ternurento que vinha sempre do coração...
Dava-me força para caminhar com alegria e felicidade, por saber que te tinha ao meu lado...
Mas pelos vistos, não para sempre...

Recordar-te-ei sempre, com muito amor, tal como no primeiro dia da nossa viagem ao cimo de uma montanha, a olhar para a infinitude de uma chuvosa paisagem Outonal, recolhidas cada uma na sua aconchegante e quente mantinha, a conversar de mágicos, bruxas e castelos que na altura pensava que somente nós compreendiamos.
As saudades levam-me quase a desesperar...

Com magia e místicismo um... Até Breve.

sábado, outubro 22, 2005

O ódio do homem pelo homem

Em Otawa, há 8 anos atrás, houve uma conferência internacional sobre o uso das minas. O objectivo da conferência era precisamente acabar com a utilização das minas no século XXI.
O objectivo falhou miseravelmente, não houve nenhuma nação que achasse por bem renunciar a uma arma tão económica e tão eficaz. De 30 em 30 minutos, explode uma no mundo, a sua "vitalidade" dura cerca de 50 anos. Isso significa que, em 2055, haverá muitas pessoas que morrerão devido a minas que foram colocadas hoje, que morrerão devido a uma guerra de que já ninguém recordará o nome ou o motivo.

Em certos países, há um par de minas preparadas para cada criança que nasce. Um fio cor-de-rosa no berço, um fio azul e, de ambos os lados, dois belos objectos de metal.
Quão enraizado, quão profundo e louco é o ódio do homem pelo homem: por causa de uma ideia, por causa de uma fronteira, é capaz de semear a morte entre as gerações futuras.
Guerras que começaram com um simples gesto de raiva e, no entanto, terminaram, muitos anos depois, na inocência, na desgraça, na ignorância de pessoas que lutam sem sequer saber porquê.
Tenta-se dividir fronteiras, com violência, guerra, ocupação, valas, ódios étnicos e, bem mais tarde, ainda se consegue respirar tudo isso de um modo extraordinariamente vivo.
É tão superficial acreditar que as guerras acabam no dia do armistício!!
O ódio, a violência, uma vez desencadeados, avançam, vão-se propagando subterraneamente, longe dos olhares, como os rizomas de certas plantas daninhas. Convencemo-nos de que as arrancámos a todas mas, de repente, vemo-las despontar, fortes e vigorosas, do outro lado do campo. Para melhorar as minas e os engenhos explosivos, inventaram-se tecnologias sofisticadas, há robots telecomandados, e há homens e mulheres que arriscam diariamente a vida por causa disso.
Claro que o tempo que é necessário para as tornar inofensivas é muitíssimo maior do que o tempo desperdiçado para as tornar ofensivas. Destruir é sempre o caminho mais curto, para matar basta premir um gatilho, para não matar tem de se fazer um enorme esforço para tentar compreender os outros.
O que há a fazer não é apenas melhorar os engenhos, também é urgente melhorar os corações, habituarmo-nos a compreender em vez de julgar, a abrirmo-nos e não a fecharmo-nos, a viver a paz não como uma ideia mas como o próprio ritmo da nossa vida.

domingo, outubro 16, 2005

Preconceituoso e Fanático

Este jogo é fruto de uma neurose social que aparece principalmente entre os inseguros. A pessoa preconceituosa precisa de algum tipo de vazão para as suas hostilidades emocionais. O bode expiatório, nesta situação, não terá, certamente, qualquer benefício para o seu desenvolvimento.

Penso que o preconceito, de certa forma, nasce das nossas ansiedades; sentimo-nos inseguros e juntamo-nos a um grupo como forma de protecção. "Aqueles que estão fora do meu grupo são considerados um perigo e uma ameaça. Ataco-os porque provávelmente também me sinto ameaçado por eles. Não consigo dar disto uma explicação lógica(apesar de apresentar várias razões), mas qualquer pessoa que não está no meu grupo, se eu estiver muito ansioso e inseguro, representa uma ameaça para mim."

O preconceito é um engano emocional. Mas, onde quer que exista, nunca é reconhecido como tal pelas pessoas preconceituosas. O fanático vai sempre tentar explicar o seu preconceito (pré-julgamento significa julgamento anterior à consideração da evidência) em termos intelectuais. Dificilmente admite a irracionalidade da sua posição.

A sociedade costuma contribuir para a formação de novos preconceitos através de um trabalho de racionalização, necessário á explicação desses preconceitos; conclusão: a maioria dos fanáticos não precisa de lidar com a sua própria explicação lógica e racionalizada. Basta recitar algumas frases bem ensaiadas.

Um óptimo exemplo para se compreender perfeitamente o que significa preconceito e fanatismo é exactamente o clima ditatorial e nazi de Adolf Hitler, marco fundamental das formas de racismo mais absurdas que o mundo já presenciou. Com a sua ideia de perpetuar a raça ariana e, portanto, não misturar "o sangue puro" do homem branco com outras etnias, realizou uma perseguição implacável contra os judeus.
Ele considerava a desigualdade entre as raças e os indivíduos como parte de uma imutável ordem natural e exaltava a raça ariana como o único elemento criativo da humanidade. Toda a moralidade e verdade eram julgadas por este critério: tinha que estar de acordo com o interesse e preservação do povo.
Para Hitler, os judeus eram a própria encarnação do mal, fosse de que idade fosse.

A sua ideologia (pessoalmente e para meu uso, defino "ideologia" como uma tese sociopolítica adequada a um conceito peculiar de natureza humana) fascista e nazista, feita inicialmente de minorias fanáticas extremamente activas, têm uma receita racional ou científica para o desenvolvimento e tendem a aguardar o devido momento para uma guerra ou revolução de domínio mundial.

sábado, outubro 15, 2005

O novo valor de se ser criança

Há uns tempos atrás, estava a falar com uma amiga minha, de 26 anos, sobre o facto de se ser madrinha. Ela já o é há dois anos. Mas não falavamos da emoção, e sim da responsabilidade de se ser madrinha.
A minha amiga dizia que costumamos esquecer-nos da importância desse papel, consideramo-lo um facto mundano e, mal saímos da igreja, até nos podemos esquecer do rosto da criança. Pelo contrário, a participação no sacramento do baptismo cria- ou deveria criar - um "parentesco" indissolúvel. Não que eu seja a favor dessas crenças e desses rituais que consta na tradição de muitos, até porque nem católica sou, mas tento conmpreender ambos os lados e penso que quando se assume um compromisso, esse mesmo compromisso - o compromisso de transpormos juntos o percurso do Espírito - não pode conhecer, não deve conhecer, cansaços, incompatibilidades, divórcios. Na profunda fragilidade familiar que caracteriza esta nossa época histórica, a madrinha ou o padrinho podem vir a ser figuras muito importantes, figuras capazes de oferecer solidez, estabilidade e esperança nos momentos em que todas as coisas e todos os valores se confundem. Em vez disso, olha-se em redor e repara-se que, sob o ponto de vista espiritual, a maioria das crianças cresce entregue a si própria.

Para as tornar donas do seu tempo, ensina-se-lhes a usar o computador, e depois a língua inglesa, "porque se não sabes inglês não tens futuro", e depois a jogar ténis e fazer dança clássica ou natação: em suma, preenchem-se os seus dias com uma infinidade de coisas para se pensar que essas mesmas coisas irão fazer delas seres humanos completos, capazes de enfrentar a existência como vencedores. Uma série de actividades práticas e nada que tenha a ver com a vida interior. Faz-se a comunhão, é certo, mas faz-se, na maior parte dos casos, porque "todos a fazem": se a família não é crente e não vive os valores cristãos, é muito difícil que possa "participar" nessa fase tão importante.

Assim se criam crianças hiper-informadas: aos sete, oito anos, já sabem tudo, sabem utilizar as palavras adequadas e falam com a sabedoria um pouco pedante de adultos em ponto pequeno, mexem no computador e nos jogos de vídeo com a mesma naturalidade com que nós ou os nossos pais, em crianças, jogávamos ao berlinde ou brincávamos com barbies; vêem sem pestanejar filmes de terror que me deixariam com insónias durante umas quantas noites. Não há nada que as surpreenda, as aterrorize e as encante, estão sentadas no meio do caos dos nossos dias com a imperturbabilidade indiferente de pequenos bonzos. A imagem é esta. Mas a imagem será também a realidade?
Ou será um ecrã colocado diante dos nossos olhos para nos tranquilizar, para não nos fazer sentir culpados?
Sempre que tive a possibilidade de raspar esse cómodo verniz, descobri realidades muito diferentes. Não imperturbabilidade, mas uma profunda ansiedade. E, por detrás da ansiedade, tédio, depressão, a ideia de que a vida não tem qualquer objectivo. E também uma grande fragiligade e uma grande imaturidade emocional.

Quem somos? Por que vivemos? O que há por detrás da aparência? Qual é o sentido do mal? Qual é o sentido da morte? O que é a salvação? De onde vem? Perguntas a que nenhum computador, nenhum jogo de vídeo, nenhum curso de línguas poderá alguma vez dar resposta.

domingo, outubro 09, 2005

O coração é o nosso sol

De acordo com a disciplina do yoga, ao coração corresponde um chakra, isto é, um centro vivo de energia. Cada chakra do corpo humano está associado a uma cor e a do coração é a mais bonita de todas, vai do cor-de-rosa a um verde luminoso que, nas orlas, passa a dourado. Um chakra do coração aberto ilumina os olhos e o rosto, torna o corpo estável e harmonioso; se, pelo contrário, está fechado ou contraído, o olhar ensombra-se e apaga-se: a sombra obscurece o corpo, como a aproximação de um temporal obscurece o Sol.

O coração é o nosso sol, o nosso pequeno sol pessoal. Graças ao coração, damos luz e calor a quem nos rodeia. Graças ao coração, a nossa vida está cheia de alegria e de partilha. A abertura do coração é o único antídoto real contra a barbarização da nossa época. É esse o grande caminho a percorrer para que o futuro não seja um tempo de desolação, mas de construção e de esperança.

Aqui há uns dias, um amigo, bastante mais velho do que eu, disse-me que se viu ao espelho durante uma discussão com a mulher. "De repente", disse-me ele, "vi como era feio e ridículo. Não fui capaz de continuar. O motivo da discussão era tão estúpido que até tenho vergonha de me lembrar."

"O espelho é um grande mestre", acrescentou, "devíamos andar sempre com um e, logo que o mau humor começasse a despontar, devíamos olhar para o espelho e ficarmos apavorados com a nossa fealdade."
Sim, e que tamanha verdade nestas palavras. Andamos tantas vezes com caras de monstros que julgamos surreais, quando constantemente as dirigimos para alguém que até nos trata como se nós fossemos uma peça única e indispensável no seu mundo. A nossa fealdade não provém dos traços fisionómicos, mas do incumprimento da lei do coração e da união que nos agrupa e nos faz acender a chama de sentimentos que não queremos nunca que se apague. Ao ver o que está em nós no mais assustador possível, estaremos aptos a abrir-nos com os outros, a estabelecermos laços que se constroem em cada passo de tecido enrugado que se desfazem para nos transportar em caminhos de seda, de veludo, de recantos de nuvens sossegadas.

E é nesses momentos voltados para o seu EU que surgem descobertas maravilhosas: a capacidade de melhor convivência com o próximo, mais tolerância, maior paz e amor com tudo e todos. Estime, mais que tudo, o seu corpo e a sua mente como se fossem um só, e não como partes distintas que devem ser tratadas de modo desigual. Aprenda consigo e mais tarde aprenderá melhor com os outros.

quinta-feira, outubro 06, 2005

O pensamento de instantes...

Passadas umas horas de escuridão e medo, o meu estado de espírito estava mudado e pronto para fazer o que lhe competia. A chama iluminava a folha em que estava a escrever e os meus pensamentos estavam todos ali, entre a brancura do papel e aquela luz minúscula. Lá fora, o vento assobiava, batendo de leve na janela. Havia paz, suspensão total do tempo. Os pensamentos avançavam, acompanhando a languidez tranquila da minha respiração.

Durante milénios, pensei, as tardes e as noites do homem foram passadas assim, na penumbra, na paz, no íntimo recolhimento consigo mesmo. A pouco e pouco, fui-me afeiçoando aquela situação e quando a luz voltou, senti uma espécie de choque. Havia demasiadas coisas à minha volta, recheadas de desorganização e demasiado desprovidas de mistério!
Lembrei-me então, de repente, dos meus tempos no campo e de como nada disso importava. Vivia-se no meio disso, com isso, por isso. Sentia-se paixão, intensidade, emoções estabilizadas.

Na cidade, uma pessoa pode distrair-se facilmente, no campo, não. No campo, há poucas possibilidades de fugirmos a nós mesmos. E o que é a vida, na maioria das vezes, senão uma constante, afanosa, leve e astuciosa fuga de nós mesmos?
Distrairmo-nos é fácil e natural, as oportunidades para o fazer são quase infinitas e não implicam qualquer esforço, basta carregar no botão de um comando... Mas distrairmo-nos demasiado também é muito perigoso: de distracção em distracção, podemos acabar por nos levantar uma bela manhã, olhar para o espelho e ver uma pessoa que não conhecemos. Quem sou? Para onde é que vou? O que é que ando a fazer? Não sei. Faço o que os outros fazem. Vou vivendo e isso basta, tem de bastar.

Há pobreza neste tipo de vida, uma pobreza diferente da pobreza material de antigamente. Uma pobreza interior que, mais do que meter medo, humilha. Humilha a grande potencialidade que há em cada um de nós. Por que é que associo este discurso à descrição inicial da falta de luz? Porque estou convencida de que um elemento fundamental dessa fuga de nós mesmos é a falta de espaços e de situações para vivermos em silêncio, em recolhimento. A solidão é o meio mais extraordinário para entrarmos na nossa própria intimidade. E paradoxalmente, a solidão também é o melhor meio para aprendermos a comunicar. Só conhecendo-me, ou seja, conhecendo a minha interioridade, é que posso falar à interioridade do outro. Somos alvejados, cercados, sufocados, estrangulados por todas as palavras que andam para aí a saltitar no ar que nos rodeia. Quanto menos coisas há a dizer, mais se multiplicam os meios técnicos para as dizer. É tragicómico, mas é assim. Rios de palavras para não se dizer nada. Rios de palavras para, no fundo, nos sentirmos cada vez mais sós.

segunda-feira, outubro 03, 2005

Por que razão é tão dificil travarmos nossas batalhas?
Por que razão nossas pequenas lutas se transformam sempre em moinhos gigantes e nos armamos de espada e cavalo que nem quixotes teimosos?

Passeata


O cheiro a pasto acabado de ceifar convida-me a percorrer os caminhos ladeados de regatos e abetos. Fascino-me com o sobreiral que me oferece uma sombra. Sento-me numa rocha e recordo-me dos meus tempos de menina, quando não havia raivas nem ódios e eu calcorreava estes caminhos para visitar o meu avô e sonhar com um mundo muito bonito, cheio de paz, de tranquilidade.
De repente acordo e sinto que já não tenho avô, já não moro no campo, já não consigo caminhar com a mesma intensidade e paixão pelas ruas das impetuosas cidades, só conservo a mesma ternura pela Natureza.

domingo, outubro 02, 2005

O Tempo

O que é o tempo? O que é o passado e o futuro? Um cientista do século XIX disse uma vez: "Nada me intriga mais que o tempo. No entanto, nada me intriga menos que o tempo." A passagem do tempo é algo que tomamos como adquirido, como absoluto e inexorável e raramente nos questionamos sobre isso. Ainda assim, para os físicos, é uma questão que se reveste de uma grande importância.

O tempo pode ser definido, simplesmente, como a variação do estado de um sistema, para dois momentos diferentes, observamos propriedades diferentes. Há, contudo, sistemas que efectuam essas variações de forma regular, por isso usamos pêndulos e cristais de quartzo para construir relógios. No entanto, as variações de estado dos sistemas não são reversíveis, quando um copo cai ao chão e se parte, não volta a reconstruir-se; quando um fósforo arde, não volta a absorver o calor para ficar de novo utilizável. A irreversibilidade dos acontecimentos é valida, não só para exemplos similares, mas para todos os acontecimentos do Universo. Isto constitui a Segunda Lei da Termodinâmica que diz que a Entropia (medida de desordem e energia não utilizável do universo) aumenta sempre (ver "Desordem e Degradção" neste blog). O aumento de entropia estabelece uma seta no tempo, a Seta Termodinâmica do Tempo.

Para além desta, existe também a Seta Cosmológica do Tempo, que está relacionada com o facto de o nosso Universo estar em expansão: o universo no futuro é sempre maior que no passado.
Contudo, interessa-nos a Seta Psicológica do Tempo. Nós, humanos, apercebemo-nos da passagem do tempo numa determinada direcção, temos memória do passado e não do futuro. A Seta Psicológica do Tempo é determinada pela Seta Termodinâmica, uma vez que os processos físicos que ocorrem no nosso cérebro para a formação de memória, pensamento, etc, estão sujeitos à Segunda Lei da Termodinâmica, pelo que ambas as setas apontam no mesmo sentido. Se a Seta Termodinâmica fosse invertida, nós lembrar-nos-íamos do futuro e não do passado.

Esperança

Há que cultivar a esperança. Que sentido há em fecharmos todos os caminhos, em entrincheirarmo-nos preventivamente numa cave onde só a nossa sobrevivência está garantida?
Detesto o catastrofismo, que se está a propagar cada vez mais, detesto as previsões apocalípticas, acho que o cinismo é um meio bastante modesto para disfarçarmos a nossa insuficiência, a nossa incapacidade de ver nem que seja um pouco mais longe.

Existe também quem, para fazer frente á perturbação, vai a correr enfiar-se debaixo das asas quentes das seitas e dos grupos. Essas seitas e esses grupos que, acima de qualquer outra coisa, impedem de pensar, que constroem um futuro, infelizmente, à sua imagem e semelhança, não permitindo a livre tomada de decisão e chamando-lhes quase secretamente ignorantes, e o garantem, chave na mão, apenas aos seus adeptos.

Acredito que entre esses dois caminhos existe outro, menos vistoso talvez e seguramente menos cómodo, menos tranquilizante. Esse caminho é o dos que andam à procura de esperança, daqueles que sabem pôr de parte todos os lugares-comuns acerca do que o homem deve ser e acerca do seu destino e que, a partir de sinais muito débeis, sabem imaginar um ser diferente. Um ser humano que ainda não nasceu, mas que ninguém diz que não vai nascer. Não se procura a esperança por medo ou para se ficar com a consciência tranquila, mas porque se acredita no potencial evolutivo que está oculto no homem.

Até agora, as grandes mudanças partiram sempre de uma utopia. Pensou-se, por exemplo, que modificando um sistema de produção mudaria o homem, e assim, num curtíssimo espaço de tempo, as utopias transformaram-se em infernos e deixaram atrás de si longos rastos de dor e de morte. As utopias sociais foram a trágica desilusão deste século. O erro fundamental foi acreditar que, modificando as estruturas da sociedade, se modificaria naturalmente o homem. Mas o que deve acontecer é precisamente o contrário: só o homem consciente é que pode fazer qualquer coisa para que tudo mude.
Procurar a esperança e fazê-la crescer, cultivá-la em nós mesmos e em quem nos rodeia, não nos rendermos ao que a sociedade de hoje nos impõe, à sua vulgaridade, à sua violência, mas ver no meio de tudo isso alguns sinais de mudança, protegê-los e alimentá-los como, na antiga Roma, as Vestais protegiam o fogo. Sem sono, nem distracções.