quinta-feira, dezembro 29, 2005

Opções éticas e estilos de vida

Na minha paixão naturalista, há poucas coisas que me fascinam tanto como a migração. Já li alguns livros sobre o assunto, mas é um fenómeno que continua a surpreender-me e a intrigar-me. As poupas, por exemplo, aparecem sempre por volta de 22 de Março; por seu lado, as andorinhas-das-chaminés, quando ainda aparecem, fazem-no por volta de princípios de Abril. Em toda a Itália e nos países europeus que praticam a agricultura intensiva e abusam de adubos e pesticidas, a sua presença reduziu-se de uma forma tão dramática que as mais importantes associações ambientais se viram na necessidade de promover uma campanha maciça de informação e protecção. Desapareceram os insectos com que se alimentavam, desapareceram os beirais dos telhados onde faziam os ninhos, e é até difícil arranjarem lama para os construir.

Os cínicos dizem: “Se as andorinhas deixarem de existir, o que é que muda? As espécies estão constantemente a desaparecer, desde que o mundo é mundo!” Ou então: “Há problemas muito mais graves a resolver do que o problema das andorinhas!” De facto, o problema das andorinhas não é mais do que a ponta do icebergue: por baixo, há uma realidade muito extensa e ameaçadora que se chama “exploração irracional e louca do equilíbrio da Terra”. E isso tem a ver, naturalmente, com coisas muito maiores do que simples andorinhas, tem a ver com a economia e a política, o abuso arrogante e o desperdício dos recursos dos países ricos e a miséria cada vez maior dos países pobres.

Creio que, neste momento, e sobretudo para as pessoas que acreditam em determinados valores, um dos problemas mais urgentes é o da escolha dos estilos de vida. Todos os dias podemos contribuir com os nossos comportamentos, mesmo os mais simples, para a degradação da Terra ou para o início do processo oposto. O criado foi-nos confiado e nós fomos confiados ao criado, não somos donos, como durante muito tempo se quis acreditar, mas hóspedes, e como hóspedes devemos obedecer às leis do respeito e da convivência, às leis da protecção e do amor. E a característica do amor é justamente não distinguir e não dividir, não estabelecer hierarquias quando se oferece.“Não podes tocar numa flor sem perturbar uma estrela”, escrever o filósofo Gregory Bateson. Nunca foi tão importante como agora decidir se se é a favor da vida ou contra a vida, se se está com a loucura destrutiva do egoísmo humano ou com “a nossa irmã e mãe terra que nos sustenta e governa”, como escreveu S. Francisco.

quarta-feira, dezembro 21, 2005

One Hour Photo

Pensem numa vida sem tudo aquilo que vos faz feliz…
Sem amigos, sem familiares, sem amantes, sem alguém para vos dar afecto e carinho…
Sem alguém que se preocupe com a vossa existência.

Como será chegar a casa e sentirem-se completamente abandonados?
Deixados à mercê de poucos e pequenos prazeres da vida que vos vão fazendo sobreviver…
Deixados a um canto escuro e isolado como um boneco dentro de uma caixa numa prateleira qualquer, privado de contacto com o exterior, a observar o desenrolar dos anos na cara dos demais…
Deixados como espectadores impotentes e incapazes de participar num filme que poderia ser a sua própria vida…
Deixados, portanto, à mercê do tempo indefinido…

O que será ter uma vida entediada e sem emoção?

Pensem em alguém assim…
O que lhe passaria na mente quando estivesse sózinho? Que caminhos e fantasias criaria na sua própria imaginação?
Uma vida está cheia de experiências enriquecedoras, tanto negativas como positivas… Mas agora retirem-lhe tudo o que poderia aprender com acompanhamento e ponham-lhe uma máquina fotográfica nas mãos.
Aqui está a minha definição, porém um pouco limitada, deste filme…
Vejam-no e aprendam, no entanto, que têm uma vida repleta de sorte e isso tudo construído por vocês mesmos… e não só!

Esta é a minha proposta antecipada de fim-de-semana.

terça-feira, dezembro 20, 2005

A Tabacaria

Não sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.

Janelas do meu quarto,
Do meu quarto de um dos milhões do mundo que ninguém sabe quem é
(E se soubessem quem é, o que saberiam?),
Dais para o mistério de uma rua cruzada constantemente por gente,
Para uma rua inacessível a todos os pensamentos,
Real, impossivelmente real, certa, desconhecidamente certa,
Com o mistério das coisas por baixo das pedras e dos seres,
Com a morte a por humidade nas paredes e cabelos brancos nos homens,
Com o Destino a conduzir a carroça de tudo pela estrada de nada.

Estou hoje vencido, como se soubesse a verdade.
Estou hoje lúcido, como se estivesse para morrer,
E não tivesse mais irmandade com as coisas
Senão uma despedida, tornando-se esta casa e este lado da rua
A fileira de carruagens de um comboio, e uma partida apitada
De dentro da minha cabeça,
E uma sacudidela dos meus nervos e um ranger de ossos na ida.

Estou hoje perplexo, como quem pensou e achou e esqueceu.
Estou hoje dividido entre a lealdade que devo
À Tabacaria do outro lado da rua, como coisa real por fora,
E à sensação de que tudo é sonho, como coisa real por dentro.

Falhei em tudo.
Como não fiz propósito nenhum, talvez tudo fosse nada.
A aprendizagem que me deram,
Desci dela pela janela das traseiras da casa.
Fui até ao campo com grandes propósitos.
Mas lá encontrei só ervas e árvores,
E quando havia gente era igual à outra.
Saio da janela, sento-me numa cadeira. Em que hei de pensar?

Que sei eu do que serei, eu que não sei o que sou?
Ser o que penso? Mas penso tanta coisa!
E há tantos que pensam ser a mesma coisa que não pode haver tantos!
Gênio? Neste momento
Cem mil cérebros se concebem em sonho gênios como eu,
E a história não marcará, quem sabe?, nem um,
Nem haverá senão estrume de tantas conquistas futuras.
Não, não creio em mim.
Em todos os manicômios há doidos malucos com tantas certezas!
Eu, que não tenho nenhuma certeza, sou mais certo ou menos certo?
Não, nem em mim...
Em quantas mansardas e não-mansardas do mundo
Não estão nesta hora gênios-para-si-mesmos sonhando?
Quantas aspirações altas e nobres e lúcidas -
Sim, verdadeiramente altas e nobres e lúcidas -,
E quem sabe se realizáveis,
Nunca verão a luz do sol real nem acharão ouvidos de gente?
O mundo é para quem nasce para o conquistar
E não para quem sonha que pode conquistá-lo, ainda que tenha razão.
Tenho sonhado mais que o que Napoleão fez.
Tenho apertado ao peito hipotético mais humanidades do que Cristo,
Tenho feito filosofias em segredo que nenhum Kant escreveu.
Mas sou, e talvez serei sempre, o da mansarda,
Ainda que não more nela;
Serei sempre o que não nasceu para isso;
Serei sempre só o que tinha qualidades;
Serei sempre o que esperou que lhe abrissem a porta ao pé de uma parede sem porta,
E cantou a cantiga do Infinito numa capoeira,
E ouviu a voz de Deus num poço tapado.
Crer em mim? Não, nem em nada.
Derrame-me a Natureza sobre a cabeça ardente
O seu sol, a sua chuva, o vento que me acha o cabelo,
E o resto que venha se vier, ou tiver que vir, ou não venha.
Escravos cardíacos das estrelas,
Conquistamos todo o mundo antes de nos levantar da cama;
Mas acordamos e ele é opaco,
Levantamo-nos e ele é alheio,
Saímos de casa e ele é a terra inteira,
Mais o sistema solar e a Via Láctea e o Indefinido.

(Come chocolates, pequena;
Come chocolates!
Olha que não há mais metafísica no mundo senão chocolates.
Olha que as religiões todas não ensinam mais que a confeitaria.
Come, pequena suja, come!
Pudesse eu comer chocolates com a mesma verdade com que comes!
Mas eu penso e, ao tirar o papel de prata, que é de folha de estanho,
Deito tudo para o chão, como tenho deitado a vida.)

Mas ao menos fica da amargura do que nunca serei
A caligrafia rápida destes versos,
Pórtico partido para o Impossível.
Mas ao menos consagro a mim mesmo um desprezo sem lágrimas,
Nobre ao menos no gesto largo com que atiro
A roupa suja que sou, em rol, pra o decurso das coisas,
E fico em casa sem camisa.

(Tu que consolas, que não existes e por isso consolas,
Ou deusa grega, concebida como estátua que fosse viva,
Ou patrícia romana, impossivelmente nobre e nefasta,
Ou princesa de trovadores, gentilíssima e colorida,
Ou marquesa do século dezoito, decotada e longínqua,
Ou cocote célebre do tempo dos nossos pais,
Ou não sei quê moderno - não concebo bem o quê -
Tudo isso, seja o que for, que sejas, se pode inspirar que inspire!
Meu coração é um balde despejado.
Como os que invocam espíritos invoco
A mim mesmo e não encontro nada.
Chego à janela e vejo a rua com uma nitidez absoluta.
Vejo as lojas, vejo os passeios, vejo os carros que passam,
Vejo os entes vivos vestidos que se cruzam,
Vejo os cães que também existem,
E tudo isto me pesa como uma condenação ao degredo,
E tudo isto é estrangeiro, como tudo.)

Vivi, estudei, amei e até criei,
E hoje não há mendigo que eu não inveje só por não ser eu.
Olho a cada um os andrajos e as chagas e a mentira,
E penso: talvez nunca vivesses nem estudasses nem amasses nem cresses
(Porque é possível fazer a realidade de tudo isso sem fazer nada disso);
Talvez tenhas existido apenas, como um lagarto a quem cortam o rabo
E que é rabo para aquém do lagarto remexidamente

Fiz de mim o que não soube
E o que podia fazer de mim não o fiz.
O dominó que vesti era errado.
Conheceram-me logo por quem não era e não desmenti, e perdi-me.
Quando quis tirar a máscara,
Estava pegada à cara.
Quando a tirei e me vi ao espelho,
Já tinha envelhecido.
Estava bêbado, já não sabia vestir o dominó que não tinha tirado.
Deitei fora a máscara e dormi no vestiário
Como um cão tolerado pela gerência
Por ser inofensivo
E vou escrever esta história para provar que sou sublime.

Essência musical dos meus versos inúteis,
Quem me dera encontrar-me como coisa que eu fizesse,
E não ficasse sempre defronte da Tabacaria de defronte,
Calcando aos pés a consciência de estar existindo,
Como um tapete em que um bêbado tropeça
Ou um capacho que os ciganos roubaram e não valia nada.

Mas o Dono da Tabacaria chegou à porta e ficou à porta.
Olho-o com o deconforto da cabeça mal voltada
E com o desconforto da alma mal-entendendo.
Ele morrerá e eu morrerei.
Ele deixará a tabuleta, eu deixarei os versos.
A certa altura morrerá a tabuleta também, os versos também.
Depois de certa altura morrerá a rua onde esteve a tabuleta,
E a língua em que foram escritos os versos.
Morrerá depois o planeta girante em que tudo isto se deu.
Em outros satélites de outros sistemas qualquer coisa como gente
Continuará fazendo coisas como versos e vivendo por baixo de coisas como tabuletas,

Sempre uma coisa defronte da outra,
Sempre uma coisa tão inútil como a outra,
Sempre o impossível tão estúpido como o real,
Sempre o mistério do fundo tão certo como o sono de mistério da superfície,
Sempre isto ou sempre outra coisa ou nem uma coisa nem outra.

Mas um homem entrou na Tabacaria (para comprar tabaco?)
E a realidade plausível cai de repente em cima de mim.
Semiergo-me enérgico, convencido, humano,
E vou tencionar escrever estes versos em que digo o contrário.

Acendo um cigarro ao pensar em escrevê-los
E saboreio no cigarro a libertação de todos os pensamentos.
Sigo o fumo como uma rota própria,
E gozo, num momento sensitivo e competente,
A libertação de todas as especulações
E a consciência de que a metafísica é uma consequência de estar mal disposto.

Depois deito-me para trás na cadeira
E continuo fumando.
Enquanto o Destino mo conceder, continuarei fumando.

(Se eu casasse com a filha da minha lavadeira
Talvez fosse feliz.)
Visto isto, levanto-me da cadeira. Vou à janela.
O homem saiu da Tabacaria (metendo troco na algibeira das calças?).
Ah, conheço-o; é o Esteves sem metafísica.
(O Dono da Tabacaria chegou à porta.)
Como por um instinto divino o Esteves voltou-se e viu-me.
Acenou-me adeus, gritei-lhe Adeus ó Esteves!, e o universo
Reconstruiu-se-me sem ideal nem esperança, e o Dono da Tabacaria sorriu.


Álvaro de Campos, 15-1-1928


Porquê por este poema aqui?
Porque é exactamente o meu favorito e já tinha saudades de o recordar! Como o conheci no Natal à três anos, apesar de já ter lido vários poemas de Fernando Pessoa e dos seus heterónimos, decidi pô-lo aqui para mais pessoas como eu que gostam de poesia poderem desfrutar!
Aproveitem... já que, enfim, é Natal!

segunda-feira, dezembro 19, 2005

Cada Trinta Minutos

"Mas nas nossas redes de telecomunicações há novos vírus e novos vermes cada 75-90 minutos. Em 2006 aparecerá um vírus ou verme novo a cada 30 minutos.
A pressão na produção do software é tão grande que não há tempo para verificar a sua qualidade. Na rede, a vulnerabilidade é enorme, porque Governos e Instituições decidiram que o custo é mais importante que a qualidade.
Se os consumidores, vendedores e governos fizessem da qualidade uma prioridade, poderia ser que começássemos a ver alguma mudança no sentido da maior segurança das comunicações na parte entregue aos seres de silício. A capacidade de medir e comunicar o risco, entre humanos, requer a colaboração de todo o espectro das ciências sociais e do comportamento.
De facto, o sistema de crenças modela, a cada momento, a compreensão do futuro. O conhecimento de detalhes é essencial para uma comunicação efectiva.
Ora a capacidade das pessoas processarem e perceberem comunicações sobre risco depende da sua capacidade de entender números e da capacidade de entender linguagem escrita. Para perceberem o conteúdo da mensagem precisam de entender linguagem e, também, alinguagem da ciência.
A quantificação por meios verbais é muito difícil mas necessária para aumentar a compreensão das pessoas sobre a natureza e o grau do risco.
Na percepção do risco um outro aspecto importante é o do conhecimento da diversidade de pessoas que têm que trabalhar em conjunto para enfrentar o mesmo problema: proteger uma muito vulnerável sociedade eficaz.
O conhecimento necessário para chegar à solução já foi acumulado.
É apenas uma questão de tempo e esforço. Um dia, certamente, a solução para a protecção da sociedade eficaz emergirá da complexidade dos conhecimentos dispersos. Estará à mão. Por perto. Num local."

Livro "Convoquem a Alma", de Fernando Carvalho Rodrigues.


Agora eu pergunto: Acreditam mesmo nisto? Que a solução está por perto? Então se está assim tão perto porque não a descobrem? E será que já não podiam ter feito alguma coisa à mais tempo? Será este processo da compreensão dos riscos a nível tecnológico assim tão vantajoso?

Esta evolução e a aquisição de conhecimentos ao nível da telecomunicação, a meu ver, terá sempre dois caminhos bem distintos:
Rápida, inevitável e contraditória para uns, a raiz de todos os males futuros e o pesadelo dos pobres para outros, a Informática, pelo menos na forma como é entendida, não é pacífica. Destroí mentes, banaliza informação, aniquila o processo de socialização. É necessário existir uma orientação, mas não de tal modo a escandalizar e manipular o mundo, tornando o nosso aspecto de integridade, de naturalidade e de uma sociedade isenta de vícios, noutro aspecto completamente diferente de materialismo, de superficialidade e de futilidade sobre o impacto de uma nova era de dependência tecnológica.
Por outro lado, de uma forma completamente inovadora e radical, os computadores, por exemplo, trouxeram aos nossos tempos espantosas oportunidades para o ensino e ajudaram a estimular a produtividade em todo o mundo. com o acesso barato e generalizado, eles ajudaram as notícias e a informação a propagar-se com uma velocidade e uma liberdade sem precedentes, quebrando barreirs entre nações, povos e economias. Permitiu também, a pessoas de todas as idades, a fácil comunicação e a eficaz aderência a este novo meio de enriquecimento, trazendo um extraordinário poder à máquina.

Agora, até que ponto isto é uma mudança funtamental para a nossa formação? Não sei e tenho as minhas sérias dúvidas...

sexta-feira, dezembro 16, 2005

O frasco de Maionese

Meus caros amigos como adorei esta história decidi partilhá-la com vocês...

Um professor diante da sua turma de filosofia, sem dizer uma palavra, pegou num frasco grande e vazio de maionese e começou a enchê-lo com bolas de golfe.
A seguir perguntou aos alunos se o frasco estava cheio.
Todos estiveram de acordo em dizer que sim.
O professor pegou então numa caixa de fósforos e vazou-a para dentro do frasco de maionese.
Os fósforos preencheram os espaços vazios entre as bolas de golfe.
O professor voltou a perguntar aos alunos se o frasco estava cheio, e eles voltaram a responder que sim. De seguida o professor pegou uma caixa de areia e vazou-a para dentro do frasco.
A areia preencheu todos os espaços vazios e o Professor questionou novamente se o frasco estava cheio. Os alunos responderam-lhe com um sim em coro.
O professor em seguida adicionou duas chávenas de café ao conteúdo do frasco e preencheu todos os espaços vazios entre a areia. Os estudantes riram-se.
Quando os risos terminaram, o professor comentou: - "Quero que percebam que este frasco é a vida. As bolas de golfe são as coisas importantes, como a família, os filhos, a saúde, os amigos, as coisas que vos apaixonam. São coisas que mesmo que perdêssemos tudo o resto, a nossa vida ainda estaria cheia. Os fósforos são outras coisas importantes, como o trabalho, a casa, o carro, etc. A areia é tudo o resto, as pequenas coisas. Se primeiro colocamos a areia no frasco, não haverá espaço para os fósforos, nem para as bolas de golfe.
O mesmo ocorre com a vida: Se gastamos todo o nosso tempo e energia nas coisas pequenas, nunca teremos lugar para as coisas que realmente são importantes. Preste atenção às coisas que realmente importam. Estabeleçam as vossas prioridades, e o resto é só areia. "
Um dos estudantes levantou a mão e perguntou:- "Então e o que representa o café?"
O Prof. sorriu e disse: - "Ainda bem que perguntas! Isto é só para vos mostrar que, por mais ocupada que a vossa vida possa parecer, há sempre lugar para tomar um café com um amigo. Quando as coisas da vida te parecerem demasiadas, lembra-te do frasco de maionese e café."

quarta-feira, dezembro 07, 2005

A Fitness (A estupidez humana maquinal)

Mais cedo ou mais tarde, em qualquer tipo de conversa, renasce sempre o interesse pela discussão do físico e acabamos inevitavelmente por falar da relação que há entre o corpo e o espírito e do pouco caso que se faz dessa relação.

“É como se fossem dois pratos da mesma balança. Num dos pratos, está o desprezo do corpo, no outro, a exaltação narcisista da fitness. Qual das duas situações é mais prejudicial?”
Perante esta pergunta numa das minhas aulas de Integração, houve opiniões muito diferentes: eu achava que a mais prejudicial era a segunda. De facto, o desprezo pelo corpo pode sempre ser remediado, mas já é mais difícil escapar ao condicionamento de um caminho já iniciado.

O que é a fitness? Só saberei defini-la como um conjunto de dietas, conselhos e actividades físicas programadas que se destinam a manter o corpo o mais tempo possível jovem e desejável. Trata-se de uma forma de cultura centrada exclusivamente na saúde, uma cultura uma cultura que veio da América e que em poucos anos invadiu as páginas das nossas revistas femininas e a programação dos nossos ginásios, criando, entre outras coisas, uma colossal rede de negócios. Dito assim, até pode parecer uma coisa inocente, ou melhor, benéfica.

Na realidade, se se parar um pouco para reflectir, para observar, vê-se que não é assim. O que mais impressiona nos adeptos da fitness é a obsessão. Obsessão em seguir um programa ou um modela: todos os esforços, todas as energias devem ser encaminhados para transformar o nosso miserável, infeliz e deselegante corpo num idealizado e inexistente “corpo perfeito”. A coxa deve ser assim, o fundo das costas deve ser assado, a barriga, lisa, as faces, firmes: e quem não o consegue é um falhado.
O que nos cheira a esturro é justamente a uniformização dos corpos; porque a uniformização – ou seja, a vontade de tornar tudo igual – anula a diversidade, e a partir do momento em que não se aceita a diversidade mete-se por uma encosta muito perigosa. Com efeito, não aceitar a diversidade é não aceitar as próprias bases da convivência entre os homens, as bases da humanidade. Por outro lado, a obsessão da sedução e da juventude a todo o custo também cheiram a esturro: em vez de se ir acompanhando com afecto a passagem dos anos, faz-se tudo para remar contra eles, para apagar o mais pequeno sinal da passagem do tempo.

segunda-feira, dezembro 05, 2005

A aberração do "Bonismo"

Tenho ouvido esta palavra ultimamente com alguma frequência e sempre que a oiço fico com a mesma cara inicial de estupefacção.
Realmente a palavra em questão é sim, de facto, "bonismo". E afinal o que é o "bonismo"?
Para ser sincera, não sei, não faço a mais pequena ideia.
Mas pensemos desta maneira...
Num dia já longínquo, uma alma muito cândida fez as seguintes equações: coração = mel; mel = bondade; bondade = sentimento inferior, donde "bonismo", ou seja, "simulação de intenções benéficas para iludir a credulidade popular". E, feliz com a genialidade da sua intuição, fui logo gritá-la aos quatro ventos.
Foi a partir desse instante que o espantalho do "bonismo" passou a andar nas páginas dos jornais, nos lábios dos locutores do telejornal, nas reportagens sociais, nas classificações dos livros.

Pensei então através de uma história verídica que li sobre o fracasso de uma vida, sobre a superficialidade dos sentimentos convencionais, sobre a dificuldade de se contactar com a verdade mais profunda da vida, a verdade de Espírito. Retrata a história de uma mulher confusa, egoísta, que só foi capaz de ceder à intuição do amor nos últimos dias, já à beira da morte. Há nela, desde o início, primeiro insidiosa e depois cada vez mais intensa, uma tensão, uma inquietação espiritual que culmina no encontro com o jesuíta. Esta mulher é, de facto, perspicaz, cruel, de uma crueldade que roça muitas vezes pelo cinismo, uma mulher capaz de dizer à neta que a mãe, já falecida, "não era inteligente".

Uma pessoa "bonista" e amorosa seria capaz de dizer semelhante coisa? Custa-me a acreditar. Onde está, portanto, a tão difamada avozinha de puxo na cabeça, que passa a vida a tirar biscoitos do forno e a dizer tolices à netinha que está longe?
Por mais que me esforce, não consigo vê-la.

No livro existe a seguinte frase: "O coração é como a terra, meio iluminado pelo Sol e meio à sombra". Nunca descrevi o coração como um favo de mel, mas como o lugar da complexidade e da ambivalência humana, um lugar onde o mal triunfa muitas vezes sobre o bem. O mal faz parte da nossa natureza mais profunda; o mal é fácil, banal, espontâneo; o mal não requer esforço nem oposição. O mal é um atalho; o bem, pelo contrário, é um percurso. Um percurso solitário, escabroso, difícil, muitas vezes impopular; um percurso cheio de quedas.

Não há pessoas boas, o que há é pessoas conscientes, que aceitam seguir por esse caminho; pessoas que recusam a superficialidade do conformismo e as ciladas do preconceito, aquele preconceito que tantas vezes cresce vigoroso nos espíritos, ilusoriamente livres, dos chamados "anticonformistas".
O bem é uma coisa extremamente séria, porque o mal é uma coisa extremamente séria. Ignorar isto é condenar-se a viver na camada mais epidérmica e fátua da existência. Não se pode ser bom por moda jornalística, conveniência ou mera preguiça. A bondade é um caminho extremamente severo e, porque é severa, tem necessidade de ser discreta. E de ser forte, porque a bondade, tal como o amor, exige força, a grande, a imensa força do Espírito.