quinta-feira, outubro 06, 2005

O pensamento de instantes...

Passadas umas horas de escuridão e medo, o meu estado de espírito estava mudado e pronto para fazer o que lhe competia. A chama iluminava a folha em que estava a escrever e os meus pensamentos estavam todos ali, entre a brancura do papel e aquela luz minúscula. Lá fora, o vento assobiava, batendo de leve na janela. Havia paz, suspensão total do tempo. Os pensamentos avançavam, acompanhando a languidez tranquila da minha respiração.

Durante milénios, pensei, as tardes e as noites do homem foram passadas assim, na penumbra, na paz, no íntimo recolhimento consigo mesmo. A pouco e pouco, fui-me afeiçoando aquela situação e quando a luz voltou, senti uma espécie de choque. Havia demasiadas coisas à minha volta, recheadas de desorganização e demasiado desprovidas de mistério!
Lembrei-me então, de repente, dos meus tempos no campo e de como nada disso importava. Vivia-se no meio disso, com isso, por isso. Sentia-se paixão, intensidade, emoções estabilizadas.

Na cidade, uma pessoa pode distrair-se facilmente, no campo, não. No campo, há poucas possibilidades de fugirmos a nós mesmos. E o que é a vida, na maioria das vezes, senão uma constante, afanosa, leve e astuciosa fuga de nós mesmos?
Distrairmo-nos é fácil e natural, as oportunidades para o fazer são quase infinitas e não implicam qualquer esforço, basta carregar no botão de um comando... Mas distrairmo-nos demasiado também é muito perigoso: de distracção em distracção, podemos acabar por nos levantar uma bela manhã, olhar para o espelho e ver uma pessoa que não conhecemos. Quem sou? Para onde é que vou? O que é que ando a fazer? Não sei. Faço o que os outros fazem. Vou vivendo e isso basta, tem de bastar.

Há pobreza neste tipo de vida, uma pobreza diferente da pobreza material de antigamente. Uma pobreza interior que, mais do que meter medo, humilha. Humilha a grande potencialidade que há em cada um de nós. Por que é que associo este discurso à descrição inicial da falta de luz? Porque estou convencida de que um elemento fundamental dessa fuga de nós mesmos é a falta de espaços e de situações para vivermos em silêncio, em recolhimento. A solidão é o meio mais extraordinário para entrarmos na nossa própria intimidade. E paradoxalmente, a solidão também é o melhor meio para aprendermos a comunicar. Só conhecendo-me, ou seja, conhecendo a minha interioridade, é que posso falar à interioridade do outro. Somos alvejados, cercados, sufocados, estrangulados por todas as palavras que andam para aí a saltitar no ar que nos rodeia. Quanto menos coisas há a dizer, mais se multiplicam os meios técnicos para as dizer. É tragicómico, mas é assim. Rios de palavras para não se dizer nada. Rios de palavras para, no fundo, nos sentirmos cada vez mais sós.

3 Comments:

Blogger Desconhecida said...

Já o disse não sei onde, mas a solidão não é estar só, a solidão é sentirmo-nos sós, mesmo quando muito acompanhados. Eu gosto de estar sózinha, eu preciso de estar sózinha, mas não gosto de solidão, nunca a senti.A solidão, pode, em alguns casos, ser um estado de espirito, ou uma opção pessoal, noutros é imposta, como mtas vezes acontece a quem mora no campo, por isso a região do Alentejo é das que mais taxa de suicidios apresenta em Portugal e no mundo!

Acho que fugi um pouco ao Post, mas olha, foi nesta direcção que me saiu o comentário.

10/06/2005 9:41 da tarde  
Blogger JNM said...

Acho que:
1-há pessoas que não conseguem estar sozinhas;
2-há pessoas que não têm capacidade para estar sozinhas.
Vi este post no trabalho e contive-me até chegar a casa. As pessoas não têm o hábito do exercício da solidão, é chato, é outfashion, é uma coisa para loucos ou para marginais, pelo menos é o que muitas pessoas dizem. Por não terem esse hábito não se consegem concentrar, não se conseguem abstrair, a sua capacidade de imaginar é reduzida, e não conseguem realizar uma introspecção. No fundo ou são pessoas que se detestam, ou são pessoas que não sentem nada por si próprias. Podem não ser egoístas, mas são banais e fúteis. A sua meditação não passa além "do que vou fazer para o jantar e o que vou vestir amanhã". Não têm ideias e não têm capacidade para liderar...
E como sempre este blog e tu não param de me surpreender.

Votos de um bom fds.

10/07/2005 10:06 da tarde  
Blogger Abelhinha said...

Estar só, sem sentir solidão é um exercicio que por vezes não é simples.

Por vezes temos medo de nós mesmos, dos fantasmas que fomos guardando e escondendo de nós próprios com as inúmeras distrações que referes.

Estar só, abre as portas desses armários e por vezes pode ser assustador.

A solidão, essa sente-se por 2 motivos: temos alguém ao nosso lado que não nos mima quando mais precisamos, ou "não gostamos de estar com a pessoa que estamos quando estamos sós" (li isto algures n sei onde, mas subscrevo!)

10/07/2005 11:07 da tarde  

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