sexta-feira, novembro 11, 2005

"Que mágoa tens tu no coração?"

Pergunto-me, constantemente, em silêncio, observando olhares de desalento, que espécie de magoa é esta que contagia milhares de pessoas! Faço esta pergunta com o intuito de receber alguma resposta com meros gestos ou expressões que transmitam sentimentos, quem sabe até telepáticamente... mas poucas conclusões retiro.
Penso, então, no esquecimento a que está votado o enorme património de conhecimentos a todo o tipo de níveis.
Penso e repenso...

O afastamento do homem em relação à natureza foi um dos fenómenos mais notáveis da 2ª metade deste século. Em algumas dezenas de anos, a transferência maciça de pessoas do campo para as cidades pulverizou as raízes camponesas da nossa sociedade. Famílias que viveram durante séculos com um determinado sistema de valores, viram-se atiradas para um mundo novo, um mundo feito de cimento e de espaços estreitos, de convivência forçada, de ausência de silêncio e de superabundância de objectos. O preço dessa separação já começa a revelar-se. E fá-lo de uma forma subtil e perigosa, através da ruptura do equilíbrio do corpo.

Os sinais desse desequilíbrio saltam à vista de toda a gente: alergias de todos os tipos, doenças e perturbações cada vez mais estranhas perante as quais a ciência médica só consegue adiantar hipóteses. Já para não falar de uma autêntica epidemia de distúrbios psicológicos: ansiedades, fobias, depressões, estados de profunda apatia. Distúrbios que nos levam a mergulhar num mar de medicamentos, sem querermos saber se damos cabo do estômago e do fígado: o importante é deixarmos de nos sentir mal.

Por que é que ninguém pensa que muitas dessas doenças não passam de campainhas de alarme que assinalam um mal-estar, uma dificuldade de comunicação entre a alma e o corpo?
Continua-se a procurar - cada vez com maior afã e com sistemas de análise extremanente sofisticados - uma causa mecânica ou química para esse mal-estar. No entanto, o que está diante dessas máquinas, diante dessas fibras ópticas, já não é um ser humano na sua complexidade, é um motor constituído por várias peças, numas das quais deve, a todo o custo, haver um defeito.

Neste frenesim racionalista, esquecemo-nos de que o corpo é governado pela cabeça. E a cabeça, entregue a si própria, sem pontos de referência, é extremamente frágil: as emoções devastam-na e tornam-na tão instável como uma extensão de água atravessada por uma tempestade. Pode ter-se mandado analisar, fotografar e investigar os recantos mais ocultos do nosso corpo e não se ter recebido um diagnóstico satisfatório.
Então, em vez de procurarmos a causa do mal-estar dentro de nós próprios, começamos a pensar que somos vítimas de qualquer coisa externa - qualquer coisa obscura e misteriosa - que a pouco e pouco nos vai afastando dos outros e nos vai obrigando a isolar-nos cada vez mais.
E se o médico nos tivesse dito, desde o início, uma coisa diferente? Se, em vez de propor que fizéssemos análises e colheitas, nos tivesse perguntado: "Por que é que tem uns olhos tão tristes? Que mágoa tem no coração? Quando foi a última vez que se deitou num campo e olhou para o céu através dos fios de erva? Quando é que ouviu o vento entre as folhas? Alguma vez sentiu gratidão pelo facto de existir e fazer parte desta extraordinária aventura que é a vida?"

5 Comments:

Anonymous Anónimo said...

Identifico-me bastante com este texto, talvez por ser uma pessoa que me guie muito pelos sentimentos e então me sinta, no meio do mundo inteiro uma pessoa só, apática que cada vez tem mais a vontade de se enfiar numa bola e de dormir eternamente, sem preocupações, sem dependências dos outros e dos mal-estares dos outros, sem dependência de sentimentos... sem a vivência num mundo em que o desinteresse pelas pessoas e o materialismo governam... mas como tal não é possível, tenta-se sobreviver, ainda que às vezes as minhas batalhas sejam travadas sozinha, e ainda que por vezes batalhas contra mim mesma, contra os meus próprios pensamentos...
continua com as boas escritas... beijo

11/12/2005 11:43 da manhã  
Blogger JNM said...

Vês muito bem a questão com este post.
"médico, salva-te a ti mesmo" é o que te posso dizer pelo que vejo que sucede às pessoas hoje em dia, um passeio ao ar livre é trocado pelo deambular em lojas e centros comercias, a chuva é encarada como uma coisa chata e a lama como uma porcaria. Os insectos são nojentos, os répteis causam repulsa, e o campo não tem senhora da limpeza nem folha atrás da porta a indicar a última higienização ao local. Tão pouco tem um número verde para reclamar qualquer falta de atenção. E assim, dentro dos nossos imaculados e assépticos lares morreremos como moscas quando gripes como a das aves e outras epidemias nos encontrarem de guardas em baixo com o sistema imunitário deficitário e destruído pelo stress, pelas depressões, pelo urbanismo.

O Homem é o seu próprio predador...

Um beijo.

11/13/2005 2:09 da tarde  
Blogger Desconhecida said...

Bom, começo por te dizer que aquilo de que falas aqui - Doenças Psicossomáticas - são hoje o grande mal do século e, eu, por experiência própria e por "sofrer" de ansiedade generalizada e ser stressada por natureza, diria quase, hiperactiva, já senti fisicamente alguns dos sintomas próprios desta doença moderna.
Se te interessa e fores ao meu blog, ao dia 2 de Maio, encontras um excelente texto, que se chama "Sofrimentos morais do Corpo" vai exactamente ao encontro deste teu texto.

beijo e bom domingo

11/13/2005 5:22 da tarde  
Blogger Caracolinha said...

É absolutamente impressionante a facilidade com que se acredita na doença física e a incredibilidade que continua a subsistir relativamente as fragilidades das mente ... como eu concordo com cada frase, cada palavra, cada letra que tu tratas sempre de arrumar no lugar certo ...

Beijoquinha encaracolada em amizade ... ;)

11/16/2005 8:02 da tarde  
Blogger Vespinha said...

Ora nem mais.
É tudo fruto da dita competetividade,agressividade e do culto da imagem...

E preparemo-nos,que a doença do século XXI chama-se depressão!

Beijinhos da Vespinha

11/20/2005 12:47 da tarde  

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