quarta-feira, março 01, 2006

Um mundo do "usa e deita fora"

Há uns tempos atrás, encontrei uma amiga minha japonesa que, ao contrário de todas as outras pessoas, passeava com calma e serenidade pelas ruas de Lisboa. Perto de uma das lojas do Chiado, lá estava ela com o seu estilo tradicional muito típico. Não considerei aquele reencontro uma grande coincidência, já que aquela é uma das suas ruas favoritas... ela, tal como eu, adora Fernando Pessoa e faz de tudo para "estar" um bocadinho com ele! No meu caso é mais em leitura.
Decidimos ir tomar um chá de hortelã-pimenta e falar das nossas paixões. A conversa virou-se então para a cultura tradicional japonesa. Ela explicou-me que, na cultura deles, a ideia de estalagem é totalmente diferente da nossa. "Nós", disse-me ela, "vamos para uma estalagem quando necessitamos de um período de recolhimento interior. Para estarmos sozinhos, em liberdade." E de facto, já não é a primeira vez que me consta que não existe um local destinado à "sala de jantar" na maior parte das estalagens locais japonesas. Comer é considerado um facto extremamente privado, que não deve ser partilhado com nenhum estranho. Por isso, cada um recolhe-se às 6h, com um quimono (fato que os faz sentirem bastante confortáveis), para o seu quarto para ser servida a refeição. Passam o dia a olhar pela janela e a ouvir o zumbido dos insectos, acompanhado pelo rumor da água e do vento que abanam as folhas. Ela contou-me também que, por vezes, quando está mergulhada num silêncio tão "cheio", com a alegria de uma emoção inesperada, sente que o tempo se dilata, e tudo se despe das roupagens habituais para se carregar de sacralidade.

No Japão, são poucos os objectos brilhantes e até mesmo os espelhos estão pudicamente cobertos com panos. De acordo com a cultura do antigo Japão, tudo o que tem brilho não tem valor, é vulgar. Uma chávena nova ou um frasco novo são simplesmente horríveis. Vulgares, porquê? Porque um objecto que brilha é um objecto “novo” e, como é novo ainda não foi enriquecido pela nobreza que o uso lhe confere. Uma chávena esbeirada, uma chávena escurecida pelos muitos chás que nela foram bebidos, é uma chávena que viveu connosco, um objecto que tratámos com paciência e cuidado, um objecto que, com o tempo, se foi carregando dos nossos humores e dos nossos sentimentos e que nos recompensou, servindo-nos.

Agrada-me tanto esta ideia! Será que introduzir esta “ética” em relação aos objectos na loucura febril e suicida do usa e deita fora seria um início de salvação? Serve-me, não me serve, estou farto.
Esta opacidade tão cheia de significado das chávenas japonesas também se pode aplicar à amizade. Uma longa amizade tem exactamente os mesmos sinais que uma chávena enegrecida pelo tempo; há gretas e sombras nos objectos quotidianos tal como há momentos de arrufo e de sombra nas amizades. Para não se deitar fora uma chávena, ou uma amizade, tem de haver dois sentimentos já invulgares mas muito importantes: a paciência e a fidelidade. A paciência é como um tijolo, a fidelidade é como uma raiz. A paciência é o antídoto da pressa, a fidelidade é o antídoto do consumo. Se as associo a uma imagem física, penso em pequenos tijolos ou em raízes. Com os tijolos constrói-se, graças as raízes, cresce-se.

5 Comments:

Anonymous Anónimo said...

Olha, já viste o site da Dra. Daniela Mann?
Está um espectáculo!

www.amar-ela.blogspot.com

Beijinhos,
Raquel

3/02/2006 12:34 da tarde  
Blogger Rui said...

so espero que agora trates o meu carro com a nobreza que ele merece...
bjosss...

3/02/2006 7:11 da tarde  
Blogger JNM said...

Sabes... este post está fantástico. Foi escrito com serenidade.

Ki(energia)mono(veste). Vestido de energia... Eles são assim. Tudo o que conserva o nosso eu é muito mais importante que o novo em folha.

Beijo

3/04/2006 12:38 da manhã  
Blogger Caracolinha said...

Vir aqui é fazer uma permanente introspecção .... adoro ler-te, adoro a forma como encaras e olhas a vida .... como me identifico contigo ... !!!!

Beijoquinha encaracolada em amizade e admiração !!

3/04/2006 12:48 da manhã  
Blogger 100asas said...

Nunca deitar fora objectos...

Usar, re-usar mas nunca deitar fora...

Visto por outro prisma não será esta uma visão demasiado materialista? Que importância tão grande poderão ter objectos para que não possam ser trocados?

Objectos... Objectos...
Não são pessoas, não são gestos...

Porque estes não precisam certamente de se materializar para se vestirem de sentido e de sentimento!

Não é preciso rejeitar o novo para preservar a realeza do velho. Porque se assim fôr... Se esta necessidade realmente existir... É porque, na verdade, nunca fomos capazes de o revestir com a significância devida.

E quanto à amizade, não amo menos o meu amigo da infância só porque arranjei um novo...

Penso eu...
L U A L

3/07/2006 6:58 da tarde  

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