sexta-feira, dezembro 08, 2006

Ciclo - "De alegria a alegria"



Ainda me lembro, e tão claramente, aquela tarde da primeira semana da Quaresma em que as missas são tão longas que se parece viver na igreja durante esse tempo. Um silêncio absoluto invade o convento dessa semana de início da primavera, e nesse silêncio parece ouvir-se as folhas das árvores a rebentarem depois do Inverno frio e ventoso. Não há movimento no ar tudo parece calar-se nesses dias, apenas os pássaros cantam, dando ao ambiente uma sensação de paz e harmonia em que se consegue penetrar nos mais belos recantos da natureza que não conseguimos observar em outra altura devido á confusão do dia a dia.
De madrugada o sino da igreja interrompe o curto sono das freiras, está escuro o silencioso ar, nada distrai a mente. Levantando-se elas seguem serenamente para a igreja. A missa começa, o canto do coro monótono mas tão belo, eleva a mente guiando-a ao longo da jornada que deve percorrer ate às profundezas da alma, tudo o resto se ausenta, existe apenas a alma, o espírito. Os pássaros, esses como que ouvindo o coro depois das longas orações matinais, acompanham-no, trazendo no seu canto a luz do dia. Em redor tudo se encontra plácido e misterioso. A Quaresma.

Desaparece, de repente, a agitação na cozinha, não se acende o fogão, não se põe a mesa. Silenciosamente, as irmãs, saindo da missa, passam pela cozinha, levando aquilo que será a sua refeição de hoje, uma fatia de pão, uma peça de fruta. E a cozinha fica de novo deserta até ao dia seguinte. O sol já vem alto e nenhuma nuvem se atreve a incomodar o céu que também parece estar em reflexão consigo mesmo. Não se ouve nenhuma palavra. O canto do coro e as orações continuam a soar em cada movimento. Num andar cuidadoso as irmãs seguem para as suas celas onde permanecem em meditação até a missa da tarde.
O final da missa é acompanhado por uma leve brisa que ira trazer a noite, as irmãs dispersam-se sem levantar o olhar, pelo imenso jardim que rodeia o convento, passeiam-se por entre as árvores como sombras, vestidas de preto em passos leves, parecendo pairar sob o solo. Por fim encontrando-se na solidão apreciam as maravilhas da natureza criada por deus, reflectindo sobre a sua alma.
Um tronco de árvore, outrora caído em dias de tempestade, torcido e deformado pela imensa força daqueles ventos, repousa agora ao lado do rio, que traz um delicado cheiro a lodo, deixando para trás um pântano coberto de junco seco que atingido pela brisa, deixa no ar um sussurro, entra em sinfonia com o canto dos pássaros.

Esse magnifico canto de milhares de pássaros, em que todos eles parecem formar uma orquestra. Uns começando baixinho enquanto outros apanham a melodia e a elevavam num enorme concerto de imensas vozes, tonalidades. Até os corvos parecem completar aquela melodia, um galo canta na aldeia vizinha, e até esse tem o seu papel nessa sinfonia.
Do outro lado do pântano, um bosque. As árvores ainda sem folhas, cinzentas e assustadoras caíam lentamente na sombra da noite, enquanto do outro lado do horizonte num céu purpúreo, o sol desaparecia atrás da colina. Tocou o sino da igreja, e num pequeno intervalo de tempo começou também a tocar o sino da igreja da aldeia vizinha. Os corvos pretos, pousados no campo do lado oposto do rio levantaram voo cobrindo o céu, cor de sangue e, como que atraídos pelo sino, voaram em direcção à aldeia. Nesse curto tempo todos os pássaros se calaram, toda aquela magnifica orquestra se silenciou, até ao próximo nascer do dia. A noite tomava o seu poder, a noite trazia o descanso e a consciência de que amanhã seria outro dia igual a este, e que muitos outros dias serenos e belos viriam ainda. Substituindo a Quaresma viria a Semana Santa, com as suas belas missas cheias de dor e alegria, cheias de velas e flores, e logo…A Páscoa, com toda a sua alegria e esplendor, soltando as alegres vozes que se mantinham fechadas no peito durante semanas, deixando tocar todos os sinos ao mesmo tempo durante todo o dia, toda a semana, e comer tudo o que pode apetecer, despertar com o nascer do sol, e poder passear sob as árvores já cheias de folhas. Esses maravilhosos dias…
Mas… Porquê? Serão eles diferentes dos outros? Para se viver o ano todo á espera que eles cheguem!

A Quaresma ia passando, já não era a minha primeira Quaresma no convento: Lembro-me da alegria que senti ao cantar a missa da Páscoa pela primeira vez, sabendo o que significava. O mais importante acontecimento na vida cristã. Tanta luz, tanta alegria. E, depois passa, passa a Páscoa, a Sta. Trindade, a preparação para a festa dos Apostolos Pedro e Paulo, vem o Verão, com o seu congresso de canto, que significa ainda menos sono, o organismo fica esgotado. A preparação para a festa da Nsa. Sra., as árvores deixam cair as suas folhas, o Outono, trazendo o os preparativos do Natal. O Natal, que também promete ser um oásis na vida quotidiana do convento, mas que passa num dia de chuva deixando apenas as arrumações depois da festa. E lá começam aos poucos os preparativos da Quaresma, que significa Páscoa, alegria. Contudo, não me alegra, não me alegra a Páscoa quando ela chega, pois significa o início desse ciclo que nunca acaba, que se repete inúmeras vezes ao longo da vida de uma freira. As pessoas vêem e vão, e nós ficamos, agarradas a esse ciclo, pois a nossa missão é mantê-lo intacto.