segunda-feira, novembro 27, 2006

Um cheirinho de mim

Assim falando dos diferentes momentos da vida quotidiana de um convento, vale a pena referir a enorme vida psicológica que cada pessoa leva naquele local. Desde que fui parar ao convento li imensos livros sobre a religião ortodoxa, as vidas dos santos, sermões e histórias: exemplos da vida de outras pessoas. Toda a literatura ortodoxa é como um conjunto de manuais para a vida espiritual.
Eu, nada percebia de vida espiritual nem de como deve ser a vida de um convento. Ao princípio pensei que alguém viria falar comigo para me explicar as regras. Depois de alguns meses em que ninguém veio falar comigo e nem sequer me aconselhou nenhum livro para eu me guiar naquele novo modo de vida, resolvi dedicar-me a estudar minuciosamente a história e os conceitos da igreja para saber como deveria eu agir dentro da minha cabeça.
Em primeiro lugar devemos dar ouvidos à nossa consciência, e basicamente, è o essencial. (mas). A nossa mente deve estar constantemente virada para deus agradecendo e louvando-o por cada segundo da nossa existência pois sem ele não seríamos nada e de nada seríamos capazes sem a ajuda divina. A cada momento devemos recordar a hora da nossa morte, pois não sabemos quando vira e a cada minuto nos aproximamos dela, tentando mantermo-nos puros de coração e mente. Neste momento eu poderia citar os dez mandamentos. Os dez mandamentos devem ser instalados nas profundezas da nossa mente passando eles a serem os coordenadores da nossa consciência. Começamos a trabalhar lá dentro (da cabeça). Deixa cá ver, não matar, nunca metei ninguém, portanto nesse aspecto estou pura, mas os livros dizem que não alguma vez matei algum animal? Algum insecto? Mh. Pois, mas os santos não matavam mosquitos, (por exemplo) não foram eles que lhes deram vida, assim não têm o direito de a tirar. Deixavam se picar pelos insectos e depois sofriam agradecendo a Deus, por lhes ter dado a oportunidade de dominar este corpo. O nosso corpo que exige demasiado conforto e que não o merece, pois somos seres insignificantes, incapazes de fazer seja o que for sem a ajuda divina, (nunca nos podemos esquecer disso). E Devemos desenvolver, um enorme amor ao nosso criador [1], por nos ter dado a hipótese de nos libertarmos dos nossos pecados. Também são consideradas crime as ofensas dirigidas a outras pessoas, nós temos que ter a consciência de que somos os piores e por isso nem nos pode passar pela cabeça ofender alguém. A mente não deve pensar em nada mais, a não ser Deus. Para nos ajudar a concentrar, repetimos sempre na nossa cabeça uma pequena oração. Aí começamos a ter noção de quanto é difícil controlar os movimentos da nossa mente, ou seja obrigá-la a pensar, naquilo que nós queremos sem a deixar seguir o seu rumo de ideias. Como dizem os livros se não conseguimos controlar o nosso pensamento, é porque estamos repletos de pecado, que nos turva a visão da divindade de deus, por isso temos que continuar a trabalhar.
Penetrando num profundo estudo da mente, esgotando o corpo com trabalho e jejum, pouco sono, horas em pé, esgotando a mente com humilhações e rejeições, a vida toma uma dimensão diferente:
A vida é como a erva do campo que è movida pelo vento, cada acontecimento è como uma flor, e cada pessoa na nossa cabeça é também um acontecimento. É uma nova impressão, um novo sentimento, uma nova descoberta, é como uma pequena flor desse imenso campo de relações entre pessoas, de emoções, de uma imensidão de acontecimentos. Todas essas flores, ervinhas balançam com o movimento do vento, por vezes fraco, por vezes mais violento, por vezes até de mais. Umas que se entrelaçam entre si, outras que chocam contra as outras, por vezes magoando por vezes acariciando, e disso se vai tecendo a frágil rede da nossa vida. Que se rompe constantemente provocando-nos instabilidade, por vezes caímos nesses buracos para o imenso profundo existente debaixo dela, e agarramo-nos por frágeis bocados que descaem dessa rede. Aí vimos uma imensa multidão e com todo o nosso olhar abrangemos a imensa rede, ligando todas as pessoas existentes e que alguma vez existiram por inúmeras historias e factos de todos os países e continentes. Ligadas por graus de parentesco, ligadas por conhecimento, com os animais e as plantas, com as pedras e a água com a terra, com o ar… Tudo se transforma num só “estado”, num tudo e num nada. Porque tudo deixa de existir, de ter estrutura própria, porque essa rede não deixa espaço para isso. Temos que aprender a decifrá-la. Imaginamos a quantidade de conhecimentos que deveríamos possuir para compreender e explicar essa interligação, seja em temos matemáticos, seja em termos políticos ou religiosos. Ou compreender de todos os pontos de vista ao mesmo tempo e interligá-los entre si. Demonstrar uma tal rede seria impossível mesmo através de um organigrama tridimensional. Mas penso que todos de uma maneira ou outra a conseguimos imaginar na nossa cabeça. Observamos o local da rede em que andávamos a caminhar, temos que voltar a viver, não conseguimos ver, não conseguimos sair mas podemos trepar. Trepar até à abertura por onde caímos.
Trepamos um pouco. Sentimo-nos mais seguros e já conseguimos respirar o ar da vida, mas apenas a nossa cabeça se mantêm à superfície. A rede já se teceu sem nós, nós fomos atirados para fora da rede, podemos apenas observar os acontecimentos da vida e suportá-los. Vai se tecendo uma rede por baixo da rede da vida, uma rede com pouca luz vital, cheia de sombras e escuridão, mas em que se abre outra luz numa dimensão completamente diferente das anteriores. Numa dimensão ainda mais profunda e que fornece uma paz e uma total liberdade, em que existe apenas luz e nada é tudo ao mesmo tempo. Mas que se detém numa sensação demasiado frágil aos factores da vida, pois os mais pequenos pelinhos de uma frágil planta são agitados pelo vento. Queremos fazer parte da vida, evitar as rajadas de vento que nos magoam, aproveitar as rajadas que nos levantam, que nos acariciam, aprender a surfar no vento da vida, aprender a dançar nele, a sermos levados pela sua melodia e cantar com ela.
Por vezes cansamo-nos e somos atraídos pela gravidade das recordações, e empurrados pelo peso dos acontecimentos recentes, que surgem como rajadas de vento imprevistas. Por vezes arrastando-nos em furacões e levando até às profundezas, voltando a trazer à luz do dia e depois lançando-nos contra as pedras. E temos que começar a trepar de novo pela rocha tentando de novo penetrar na rede.
Subindo á superfície num sítio novo tento apanhar os bocados da minha rede, e o meu objectivo é remendá-la e tecê-la, porque se ela não existisse não existia vida, porque se em nenhum local houvesse bocados de rede ligados comigo, eu não existiria, nem isto estava escrito. É porque eu existi e mudei a vida de milhões de pessoas. Porque se eu não existisse e não me tivesse cruzado na rua com outra pessoa, a vida dessa pessoa já seria diferente, porque naquele exacto momento, naquele preciso sítio ela, não se teria cruzado comigo e isso, por mais mínima que fosse, já seria uma diferença na vida dela. Consigo voltar a sentir a rede restabelece-se de novo e com o tempo vou aprendendo a tecer a minha rede de modo a ficar segura para que possa por fim repousar nela. É esse o nosso objectivo podemos tece-la do material que quisermos, o importante è aprender a tecê-la de modo a que fique estável, não apenas em três dimensões, mas em infinitas dimensões, apenas assim conseguiremos descansar desse imenso trabalho, quem não consegue tecer a rede cai, e se não aprende com os erros, se não se esforça cai para o mais profundo escuro de onde não existe nada mas que faz parte do tudo. Por enquanto, mais nada.
Mas a verdade é que isto nunca acaba.
[1] Esquecendo completamente que somos nós que nos criamos, e que o amor a deus está estreitamente ligado com o amor a nós mesmos. A ajuda divina é a nossa própria contribuição, a dedicação que aplicamos naquilo que fazemos consoante o que queremos alcançar. Este é o aspecto essencial para a compreensão daquilo que a religião pretende transmitir.